terça-feira, 14 de outubro de 2008

O MAR DE PERMEIO – 1997

NUMA RUA DE AMSTERDAM

3. Em Amsterdam na Diezestraat 6
alguém me espera alguém me quer
alguém dá vida e brilho à minha vida
tão dividida que mal se define entre
aquilo e o que.

Alguém me espera entre tulipas
alguém me espera entre folhas tombadas
sob o sol sob a chuva sob o frio
alguém me espera espera espera.

Alguém constrói a sua casa
como artesã-abelha delicada;
sobre o sofá um quadro, uma explosão,
que cada dia mais entendo, cada ano mais,
e outros móveis, cortina,
cozinha, um banheiro
todo branco.

E para mim um quarto, uma cama,
um edredom azul, uma escova,
papéis e muitos outros objetos,
telas tintas um pedaço de ferro,
outro de ouro, outro de aço.
Alguém de longe me acena
com uma lareira acesa.


PSICOLOGIA DA LEMBRANÇA

4. Tão fácil deixar o quarto assim:
lenços roupas empilhadas
tênis papéis por todo lado,
os livros do colégio, um copo d’água,
mas um jeito de amar fala mais alto
e vai fazer a cama, renovando os
lençóis; é tão forte o calor, dói
a coluna, mas nem dói mais, quando
sonolenta ela entra
e sorri sonolenta, um anjo
pousado um momento
no meu ombro; agora a cama está sempre
feita, o armário sempre arrumado, ela
longe longe longe numa
moldura mais que perfeita, e o
dia inteiro olho seu quarto, os quadros,
faz tanta falta aquela desordem!
ela está lá e está aqui
dentro de mim,
e quando sequer falamos
ao telefone é como se nem
entre nós um oceano
houvesse, como se nem.


TOPOGRAFIA DA LEMBRANÇA

8. Em Brasília era tudo diferente:
a arquitetura quase dispensava
a paisagem frequente mas de
um a outro não-canto da cidade
era sempre uma viagem.

O arquiteto foi tão claro
que às vezes óculos escuros
se faziam necessários
para forjar o acordo entre
aquele que contempla e o contemplado.

O traço quase sempre reto e puro
algumas formas arrendondadas
a cúpula o silêncio o nu,
e nós janelas escancaradas
da nossa casa que dava
para a grama do jardim e o lago.


CASAMENTO NO CAMPO

22.Em maio em Amsterdam em Amstelveen
na capela no átrio na passarela,
no tapete vermelho da capela,
ela vai entrar com o pai lentamente
o rosto tão perfeito o corpo leve
desprendido da pedra da qual a talhamos
não da pedra talvez da madeira
nobre que ainda se encontra
em algumas florestas;
nada me fazia temer nada
do que viria mais tarde
era a luz da primavera os girassóis
de Van Gogh/a força de Rembrandt
de Vermeer de Mondrian
tudo tão íntimo, eu tão cega,
e era impossível prever
o naufrágio nos canais
cobertos de tulipas
brancas vermelhas amarelas.

1 comentário:

Darlan M Cunha disse...

Há tempos eu conheço, ainda que de leve, a exuberante poesia de Marly de Oliveira - uma poesia incrívelmente cheia de nuanças, de cores e movimentos, tudo isto vindo de modo lento, mas persistente, a partir da concisão de um núcleo.

Uma beleza este blog.