terça-feira, 14 de outubro de 2008

RETRATO

Em RETRATO, publicado em 1986, a autora como que reescreve alguns poemas de seus primeiros livros, num exercício crítico, lúdico, original e bem-humorado de metapoesia, em um surpreendente diálogo intertextual.
Alguns poemas:

- Referências explícitas a poemas do Cerco da Primavera, de Explicação de Narciso, de A Suave Pantera, de O Sangue na Veia, e outros.

De 3 Poemas a Campos: (Do Cerco da Primavera)

A CIDADE

Sobre o rio, sobre as casas,
cúpulas, ponte, avenidas,
com acertos de acrobata,
pássaros metade luz,
metade sombra, levantam
o meio-dia de prata.

Nenhum silêncio mais puro
que o destes azuis prateados,
com cimos de catedral,
ciranda de ventos e anjos;
com aves de plumas negras,
negro ritmo nos telhados.

Ao longe campos perdidos
verdejam de hastes e canas.
E são espadas flexíveis,
verdes, livres oferendas.
E moinhos que vão rodando
duro rito de moendas.

No centro a praça mais ampla:
edifícios, plantas, água,
e bronze de monumentos.
Tudo tão perfeito e certo,
como se eu estivesse junto,
num ramo claro de vento.

(De: RETRATO)

1.Houve um tempo em que escrevi:
Sobre o rio, sobre as casas,
cúpulas, ponte, avenidas,
com acertos de acrobata,
pássaros, metade luz,
metade sombra, levantam
o meio-dia de prata.

Mas o dia era azul e não de prata,
e nascia de si,
não de pássaros
(que também não eram acrobatas).
A realidade parecia insuficiente:
o céu tinha de ser de prata,
os canaviais, espadas flexíveis, (Cerco da Primavera)
logo os canaviais
que emitiam sons de harpa.
Mas também escrevi depois que
cada coisa está certa em seu lugar
cumprindo o seu destino.
(Só não me lembro onde).

2.Escrevi também aos dezessete anos:
Um rumor de vinho claro,
de bocas e mãos unidas
e um cheiro de mel e flor,
rasparam, ai, como espada,
meu corpo cheio de noite
e o teu, perdido de amor.
Por certo que não queria, (Cerco da Primavera)
mas tinha a cintura e o jeito
ao teu abraço achegados.
E na sombra relumbrava
a água verde dos teus olhos
nos meus cabelos molhados.
Como se eu não fosse de Campos
e não tivesse pais ferozes
e pudesse viver um encontro amoroso
sem ser na imaginação.

Mas também fui delicada
e falei do infinito
que esperava para além do umbral
e para além da porta.

3.E aos vinte eu escrevi: Raro cristal,
imagem pura e minha
no verde destas águas sossegadas.
Nas minhas veias um rebanho pasce
sua dor, sua antiga fúria de asas
e não turva a beleza de teu rosto (Narciso)
desnudo como um sol de prata e frio,
onde navegam peixes enlunados
seu mistério de amor e de infinito.
Nos teus olhos de céu quando tramonta,
que pássaro se cala de repente?
Que silêncio me apressa às tuas ondas,
ao teu amor, que o meu amor acende?
Que horizonte impossível grita sombra
nos separa e nos une para sempre?
Ninguém notou que eu não falava apenas
de um Narciso mirando-se nas águas,
mas de outra imagem na água projetada
pelo sonho impossível de um amor
que era tão grande e hoje se fez nada.
(Na realidade, porque sem mim existe
Com força poderosa e inalterada).

4.Sobretudo eu entendia
que era preciso mostrar
que não era só aquilo
que aparentava. E falei
da face múltipla e vária (Narciso)
deixada em vagos espelhos,
escondendo a necessária;
do indiferente sorriso,
do sonho heróico levando
a distantes mares, eu
que perscrutava o mundo,
o que existe e não existe
- e por detrás das mudanças
persistia (e persisto)
a mesma (e triste).

5. Falei depois na pantera
prisioneira de si mesma,
na negrura toda alerta.
E comparei-a a uma jóia
(que contivesse uma fera)
intensíssima e do próprio
sangue animada; (A Suave Pantera)
de sua fúria, que alcança
de si o máximo no amor,
à parte qualquer luxúria,
vaga, concreta, flutuando
(em si mesma) parada,
poderosa e bela.

Mas é claro que eu pensava
na condição do animal
todo presente a si mesmo,
íntegro, inteiro, atual,
enquanto nós nos perdemos
em pretérito e futuro,
sem dar a atenção devida
ao que de fato importa.

6.E houve então o momento
de celebrar a conjunção,
o amor, o sangue, o fogo,
a gema. E então falei
de uma gema que fosse toda fria,
mas na aparência (O Sangue na Veia)
e toda quente dentro;
de um silêncio que fosse uma cascata,
mas de que o próprio fogo
fosse o centro
e de que o próprio fogo fosse a água.

Sempre o recurso das imagens,
dos símiles, antíteses,
para falar do inefável,
lugar comum nesse tipo
de descrição (amorosa).
Usaram-nos San Juan
e também Teresa d’Ávila.

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