quinta-feira, 9 de outubro de 2008

O SANGUE NA VEIA

O SANGUE NA VEIA

O Sangue na Veia, por sua vez, reúne 46 sonetos decassílabos, encadeados por uma longa reflexão sobre o tema do Amor, visto como algo vital, porém consciente e lúcido, (“conhecer e abrasar-se” de Vieira, e não a imagem de Cupido com os olhos vendados); algo que segue uma rota própria, um caminho preciso e limitado, como o sangue na veia. Aqui tão pouco sobra espaço para tons crepusculares, e Eros é celebrado como convém.
.
ALGUNS POEMAS DE O SANGUE NA VEIA:

I. A carne é boa, é preciso louvá-la.
A carne é boa, não é triste ou fraca.
O que a atinge é a fraqueza que há num homem,
a tristeza, maior que um homem, mata-a.
A carne nada tem, salvo o seu sono,
barro tranquilo de harmoniosa forma,
corpo que distraídos animamos,
fonte real de toda a nossa glória.
A carne é o instrumento do princípio,
é por ela que eu vivo, que vivemos,
e se revela o amor como é preciso;
o que está fora se une ao que está dentro,
alma e corpo no corpo confundidos,
e a sensação completa de estar vendo.

II. Mas vendo o quê? com os olhos, os sentidos.
Que visão nos permitem, salvo aquela
instantânea e fugaz, que não dirijo,
e que não suportamos de tão bela.
O ver tranquilo, sem excesso, eu quero,
como a luz delicada que há num barco,
numa folha, num bicho; um ver quieto,
que, absorvendo o real, nos deixe fartos;
um ver maior que a fome, dilatado;
um ver maior que a sede, diluído;
um ver-amor, não água, como um cacto,
mas um cacto não áspero, e sim liso,
um cacto que pudera ser domado,
e, não sendo água, ser todo bebido.

III. Assim o amor, o que não se dissolve:
como um cacto real, sem aspereza.
Assim o amor real é como um cacto,
o que não se dilui em farta seda,
mas se amacia em seda farta e doce,
e, não sendo água, nem sendo diluível,
é o que se toca e sente, e ver-se pode
não vendo, como aquilo que é sorvido,
e é água sem ser água e sem ser sangue.
E sem ser água tudo dessedenta,
e é quase um fogo essa água toda lenta,
água não água, essa água consistente,
a que se cristaliza numa gema,
numa gema que fosse toda quente.

IV. Uma gema que fosse toda fria,
mas na aparência, e toda quente dentro,
e que tivesse a lisa superfície
do que se usa com grande atrevimento,
mas no íntimo, uma gema toda calma,
quase uma água esse fogo nos doendo,
um silêncio que fosse uma cascata,
mas de que o próprio fogo fosse o centro
e de que o próprio fogo fosse a água.
Assim o amor, assim o que se espalha
e não entorna, e vive do que vive,
e é móvel e capaz de ter limite;
assim o que se adentra e se dilata
como o sangue na veia, e é todo livre.

XVII. É como renascer de uma onda brava,
assim belo e esperado, e com a alegria
de quem foi surpreendido pela água,
que sabia que vinha, mas não via.
Os corpos se movendo para a clara
constatação da dor que se queria,
onda violenta como de outra onda
toda naturalmente renascida;
os corpos suavemente se movendo
em suave ondulação de coisa fria,
e movendo-se sempre para dentro,
- a alegria do amor é uma agonia –
cada vez mais cerrado e mais intenso
aquilo que nos move e que não víamos.

XXII. Eu caio em ti como uma bruta pedra
na água, no amor não me dissolvo, o amor
não me absolve, estou (quem nos governa,
quem nos arrasta à guerra ou ao repouso)
colada a quê? Um copo sobre a mesa.
Menos que o copo, o fundo desse copo,
e, não obstante, para sempre presa,
pois o que basta é tudo o que não posso,
pois o que basta é tudo o que me exige
uma violentação do que, por dentro,
é o meu mundo, essa coisa indefinível
e tão concreta, mas que não conheço,
e às vezes temo que me paralise.
Viver é submeter-se, em me submeto.

XXVI. A minha descoberta essencial:
a de que o amor é o pulso do que existe,
e o que existe, existindo, é limitado,
e o que vive não tem escolha, vive,
e só segundo o amor que lhe tivermos
é que o veremos e que o alteraremos.
Como deixar, se a vejo, a flor em si,
se o que vejo é também o que não vejo,
e o que passa a existir dentro de mim?
Olho a flor, ela fica toda olhada,
vejo a flor, modifico-a porque a sinto,
porque sou livre para dar-lhe uma asa
com só vê-la parada e se florindo.
Tu, só tu, puro amor, podes o nada.

XXVII. Tu só, tu, puro amor, podes o tudo
desse nada essencial que transfigura,
sem fugir ao real e ao seu contorno;
o tudo desse nada sem usura,
o tudo desse nada irreparável,
o tudo desse nada que subjuga,
a que não fujo, a que nós não fugimos,
em virtude de sermos contra a fuga,
em virtude de sermos contra a luta
em virtude de eu ser quase passiva,
e de aceitar, sendo de amor, o jugo.
Tu só, tu, puro amor, podes o tudo
desse nada essencial que nos incita.

XXIX. Tu só, pões-me no peito essa cobiça,
e mais que essa cobiça, essa doçura
agônica escorrendo pelo corpo,
como um óleo sem paz essa doçura,
esse medo, essa forma de querer
obsessiva, essa forma quase injusta.
De repente eu não caibo mais em mim,
de repente eu me torno plena e obscura,
como um rio de cheias muito altas,
que fosse para além do seu limite,
e não soubesse o que fazer das águas.
Assim o amor excede o que se vive,
e no meu pensamento ele se espraia
com aquela perfeição que há no impossível.

Sem comentários: